09 dezembro, 2010

Aprender a pensar

Crianças a fazer filosofia. Mais do que possível, é recomendável e até imprescindível. Objectivo: formar futuros cidadãos com pensamentos autónomo e consciência social.

Uma escola melhor não fabrica adultos; perpetua a idade dos porquês», defende Celeste Machado, investigadora com formação na área da Filosofia e a finalizar o seu doutoramento sobre o tema “Educar para/o Pensar”, na Universidade de Aveiro. Idealiza um conceito de escola onde as crianças aprendem a raciocinar, julgar, ter sentido crítico e a tirar partido das maravilhas da sua inteligência. Uma escola que se aproxima mais de um laboratório do que do tradicional auditório. No contexto destas correntes, programas pedagógicos como a Filosofia para Crianças, ganham protagonismo. Criado no final dos anos 60, tem conquistado professores, pais e alunos em todo o mundo. Os seus benefícios são claros e estruturantes, com aplicações na vida escolar, mas também no dia-a-dia das crianças que adquirem, assim, ferramentas para se tornarem adultos que fazem a diferença.
Aliados naturais

Ao contrário do que se possa pensar, as crianças reúnem condições excelentes para a prática da Filosofia. A sua capacidade de espanto, a noção de que os seus conhecimentos são limitados e a fome de se quererem conhecer e compreender o mundo são aspectos facilitadores. Mas foi só em 1969 que o americano Matthew Lipman se lembrou de os associar. Enquanto professor de Lógica na Universidade de Columbia, não se conformava com o fraco desempenho em termos de raciocínio dos seus alunos. Equacionou a hipótese dos hábitos de pensamento poderem ser trabalhados e treinados como as restantes matérias, desde muito cedo. Lançou a ideia, criou uma instituição e desenvolveu materiais e uma metodologia que ainda hoje continua a ser seguida. O programa Filosofia para Crianças não é uma versão menor nem infantilizada da Filosofia.
«Não se pode confundir com o ensino da história da Filosofia. Este projecto aposta na prática do exercício filosófico», explica Maria Figueiroa Rego, uma das grandes especialistas portuguesas nesta área. Um programa que ganha especial urgência face à diversidade e rapidez de acesso à informação que as novas tecnologias proporcionam. «O nosso cérebro é malabarista. Mas se na horizontalidade estamos a conseguir abranger mais estímulos em simultâneo, estamos a perder na verticalidade do aprofundamento», alerta a investigadora da Universidade do Porto. Em Portugal, desde os anos 80, a Filosofia para Crianças tem ganho terreno vagarosamente. Com muito pouco material publicado em português, falta apostar numa formação mais profissional e numa partilha mais efectiva de experiências entre os vários intervenientes.
Ao longo de todo o país, surgem novos projectos e pessoas interessadas em mostrar as grandes vantagens de uma generalização da sua prática. Sem dados oficiais relativamente ao número de escolas que a incluem como conteúdo programático, é unânime a necessidade de uma aposta na investigação. Os envolvidos concordam que é uma área a potenciar. Quando se questionam as crianças sobre a utilidade das sessões de Filosofia, obtêm-se respostas incentivadoras: «Aprendi a ouvir as outras opiniões e percebi que os pensamentos são ideias infinitas«; «Fiquei mais adulta»; «Agora, quando a minha mãe me pergunta alguma coisa, já tenho as palavras na ponta da língua».

Espaço de liberdade

O Externato Grão Vasco, em Lisboa, foi uma das escolas pioneiras na introdução da Filosofia para Crianças como actividade de enriquecimento curricular. Rogério Cândido, professor com formação na área há 12 anos, descreve: «Procuro fazer a aula num espaço diferente, às vezes até ao ar livre, para que se possam sentar em círculo. É importante o contacto visual». Habitualmente, inicia a sessão com a leitura partilhada de uma história filosófica. No fim, as crianças colocam perguntas, pondo o dedo no ar, esperando a sua vez e respeitando a vez dos outros. A partir do leque de questões, devidamente identificadas no quadro, fica com o mapa de interesses do grupo. Parte para a reflexão e discussão. «Quando estamos numa sessão de Filosofia para Crianças, despimos o papel de professor. Não é fácil. É um desafio», descreve Rogério Cândido. Mas o seu papel é muito importante, pois é ele que ajuda a aprofundar o diálogo entre os participantes e que aponta contradições que surjam na conversa. O enriquecimento é bilateral, como o próprio reconhece: «Das coisas mais estimulantes que há é assistirmos a uma criança que começa a pensar por si, a argumentar, questionar, a revelar curiosidade. E é muito gratificante sentir que no início só o fazem a custo e que depois já lhes é natural».
Dina Mendonça fez o mestrado em Filosofia para Crianças com o próprio Matthew Lipman, o criador do programa.
Com um percurso único, dá formação, cria materiais, faz intenso trabalho de campo e lidera a recém-criada associação Brincar a Pensar. Divulgar e incentivar a prática deste programa, promover acções de formação e sensibilização são alguns dos seus objectivos. Alerta para uma questão importante: «Fazer filosofia não é conversar sobre temas interessantes. O que as crianças fazem é mesmo incrível. Passa por aprender a perguntar porquê nos momentos correctos, a pensar em contra-exemplos, quando alguém está a tentar convencer-nos de alguma coisa, a procurar contradições e consequências das nossas afirmações e das nossas convicções». E acrescenta: «Isto não se faz em duas sessões; só a longo prazo. Mas o que eles aprendem aqui não aprendem em mais nenhuma situação». Sedentas de fazer perguntas, as crianças encontram, nesta «comunidade de investigação», um espaço de liberdade e democracia. «Podemos dizer o que queremos e nunca está errado», refere um dos alunos do professor Rogério. É um dos únicos tempos de escola em que não estão a ser avaliados, o que lhes permite serem eles próprios e dizerem o que verdadeiramente pensam. Além disso, no aprender a ouvir os outros e no debater respeitando diferentes pontos de vista, ganham competências cívicas importantíssimas.

Resultados inspiradores

Como Maria Figueiroa Rego explica: «Além do pensamento crítico, o programa de Filosofia com Crianças trabalha o pensamento criativo, muito mais próximo do fazer, imaginar e realizar. Sem esquecer um terceiro pilar – o caring thinking – a capacidade de agir em comunidade, em prol de um bem comum». Quando regressou dos Estados Unidos, onde trabalhou com Lipman, lembra-se dos primeiros anos em que aplicou o programa e das reacções dos que a rodeavam. «Quando as crianças transitavam do primeiro para o segundo ciclo, os professores que os recebiam ficavam impressionados com a bagagem que elas levavam. Com a sua capacidade de intervir, de assumir a responsabilidade pela sua aprendizagem, com a participação nas aulas, o interesse em investigar, os hábitos de partilha da informação, a forma como se relacionavam uns com os outros e como questionavam os professores e os colegas». 

Os pais também sentem vantagens. «Noto que o Tomás desenvolveu o gosto pela intervenção e participação nos mais variados assuntos e projectos, nunca deixando de dar a sua opinião. Toma a iniciativa de comentar assuntos da actualidade, mesmo entre adultos, sem qualquer tipo de inibição. Ainda revela alguma dificuldade em esperar pela sua vez de falar, mas interiorizou a noção de que todos devem ter uma palavra a dizer», descreve Margarida Ascenção, mãe de uma criança que frequentou sessões de Filosofia durante cinco anos.
Cláudia Philippart, outra mãe, também partilha a sua vivência: «Acho muito importante o desenvolvimento da capacidade de raciocinar e questionar. Estas práticas permitem às crianças diferenciarem-se. Cria-lhes vontade de saber mais e ajuda-as a conhecerem-se melhor a si próprias e aos outros. E habitua-as a estarem à vontade para exprimir as suas opiniões, mesmo que sejam completamente contrárias às dos outros, percebendo que a sua lógica vale tanto como a do vizinho». 

Os estudos comprovam a melhoria da capacidade de raciocínio, da aptidão para a leitura, da capacidade matemática e o aumento da auto-estima. Resultados que não se limitam à escola. Observa-se que são crianças mais sensíveis e actuantes em várias áreas, como o cuidado com o ambiente e a atenção aos animais. 

Maria Figueiroa Rego resume: «Os objectivos desta metodologia não se prendem apenas com o progresso a nível escolar. São mais ambiciosos. Em última análise, e não querendo ser demasiado utópica, o que se pretende é criar nas crianças hábitos de intervenção na construção de um bem comum». E especifica: «Extravasa as paredes de uma sala de aula, os limites de uma escola. As competências que são desenvolvidas são transdisciplinares». Entidades de referência como a UNESCO e a Unicef recomendam o programa de Filosofia para Crianças como uma prática a adoptar nas escolas, o mais cedo possível. Em funcionamento em mais de 60 países em todo o mundo, está a assistir-se na Europa a um enorme dinamismo e vitalidade, através do surgimento de vários projectos, novas metodologias e criação de materiais próprios. 

Em Portugal, o futuro mantém-se uma incógnita. «Gostava que a nova geração fosse educada com esperança, com a certeza de que há muito, muito para fazer. E como há tanto para fazer, é importante que sejam mesmo bons. Era, por isso, muito importante haver o reconhecimento da necessidade deste tipo de programas», defende Dina Mendonça. A investigadora Celeste Machado também concorda que a Filosofia é um dos caminhos: «Se concebermos a Filosofia como uma interrogação constante e uma contínua provocação na descoberta de nós próprios e do mundo, que melhor instrumento poderíamos encontrar para estimular as crianças a despertar para a complexidade que nos rodeia? Que melhor recurso poderíamos achar para a formação de futuros cidadãos, capazes de traçar os seus próprios caminhos e de construírem um mundo melhor?» .


Filosofia para crianças nos Açores
Em 2007, um grupo de investigadoras da Universidade dos Açores, submeteu ao Governo Regional o pedido de financiamento para uma investigação original: levar a Filosofia a turmas do primeiro ciclo do Ensino Básico de várias ilhas do arquipélago. O projecto CRIA (Criatividade e Reflexão para a Infância Açoriana) foi aprovado e a aventura começou. «A experiência de contacto com as crianças, de as ver descobrir o prazer de pensar filosoficamente, de questionar e procurar respostas válidas e fundamentadas, tornou-se apaixonante», confessa Gabriela Castro, investigadora responsável.

No início do próximo ano lectivo, será lançado um livro que congrega os resultados destes três anos do projecto e outras iniciativas estão já previstas. «Escolas, associações de tempos livres e grupos de jovens contactaram-nos para desenvolvermos sessões de Filosofia para Crianças e estamos a preparar os protocolos necessários para o desenvolvimento dessas actividades em 2010/2011», relata Gabriela Castro.
Para um futuro menos imediato, têm até como projecto, em conjunto com o Governo dos Açores, introduzir Filosofia para Crianças, nas escolas da Região Autónoma dos Açores, como uma actividade integrada nos currículos regionais.

Gabriela Castro conclui: «Tem que se ter a noção de que não é mais um espaço de transmissão vertical de conteúdos programáticos. A Filosofia para Crianças privilegia o exercício livre, crítico e criativo do pensamento. Um modo de pensar rigoroso e fundamentado, que convida à construção activa de perspectivas próprias e esclarecidas. Só assim as novas gerações se tornarão autênticos cidadãos, conscientes, críticos e participativos».


O que se pratica
São imensas as competências trabalhadas pela Filosofia para Crianças ao longo dos anos. Aqui ficam alguns exemplos.
- Precisar o que é vago e ambíguo, raciocinar por analogia, detectar falácias, pensar por meio de silogismos;
- Dar e pedir boas razões, dar e pedir exemplos e contra-exemplos, problematizar, autocorrigir-se, potencializar a imaginação;
- Estabelecer relações entre conceitos, precisar semelhanças, definir conceitos filosóficos;
- Escutar e respeitar os outros, cuidar do crescimento dos outros, dialogar, inferir visões do mundo, ter auto-controlo.

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